As pessoas deixam de expressar muito do que pensam e sentem, para os outros e para si mesmas. Reflexões corajosas não são habituais. Às vezes não se pode e em outras não se quer. O papel socialmente esperado para cada um pode se tornar um modo de aprisionamento. Renuncia-se a parte significativa da identidade tentando corresponder às expectativas daqueles que habitam o entorno, assim como as que o próprio indivíduo incorporou e legitimou. Falar sobre si mesmo (como nas psicoterapias) e, especialmente escrever, são ações que podem criar perspectivas inusitadas para melhor enxergar o que se é e o que se vive. “CADERNO PROÍBIDO” de Alba de Céspedes (Roma, 1911 – Paris, 1997) toca nestes temas.
Valéria, a protagonista, uma mulher de quarenta e três anos, vive em Roma com o marido e um casal de filhos já adultos. Trabalha num escritório para complementar a renda familiar, além de administrar a casa. Ela compra um caderno em que passa a escrever comentários, uma espécie de diário. Isto acontece durante aproximadamente seis meses. Nas páginas do caderno ela redefine a compreensão que tem de si e de sua família. O que pensa de menos palatável, especialmente para ela mesma, emerge na escrita, rompendo camadas e camadas do convencionalismo que lhe serve de couraça. Valores são postos em xeque. Os registros são feitos entre o final de 1950 e 1951. O momento importa quanto ao que diz respeito a aspectos comportamentais comuns a mulheres e homens na época, ainda que haja mais do que as circunstâncias naquilo que é pautado. Aquilo de que ela se dá conta era insuspeitado no automatismo de seu cotidiano. Fica de frente com a frustração árida, decepcionada com crenças e os modelos que orientaram e orientam suas atitudes. Ela tem personalidade complexa, é inteligente, determinada, defendida numa rigidez moral que lhe é desvantajosa, à qual nunca aderiu verdadeiramente. Agita-se nas próprias contradições. Teme o que diz por escrito e esconde a brochura de todos.
Um dos pontos marcantes deste livro é o fato da protagonista não ser reduzida à condição de vítima da sociedade em que vive. Ela é mostrada como alguém que protege e alimenta o arcabouço que estrutura sua identidade e serve-lhe de lugar seguro no mundo. A sugestão da participação (voluntária ou não) de Valéria em seu destino é fundamental. Nesta mirada, Alba de Céspedes amplia o entendimento sobre a personagem e sobre os seres humanos de qualquer gênero. Parece mais norma do que exceção a tendência dos indivíduos à interpretação rasa dos desígnios que constroem a realidade. Pela via da criação de vítimas engendra-se um tipo de paralisia, subtrai-se o protagonismo que cada um deveria exercer para dar forma ao universo de que faz parte. A autoexclusão na percepção dos processos que erigem o mundo elimina oportunidades preciosas de fazê-lo melhor. A autora recusa este recurso. Valéria ultrapassa as fronteiras do estereótipo. Alcança alguma libertação, embora não a mais desejada, para o que seria preciso pagar um preço alto demais.
Mais do que feminista, Alba de Céspedes é humanista.
Título da Obra: O CADERNO PROIBIDO
Autora: ALBA DE CÉSPEDES
Tradutora: JOANA ANGÉLICA D’ÁVILA MELO
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS
