William Shakespeare (Stratford-upon-Avon, 1564-1616) foi um dos maiores dramaturgos de todos os tempos. Escreveu poesia também, mas as peças teatrais definem com maior propriedade seu talento. Retratou uma época, mas ainda mais o espírito humano. “A Megera Domada” é uma de suas comédias mais conhecidas (ele escreveu também tragédias e peças históricas).
O enredo se dá em torno da união de Catarina, uma moça nascida numa família italiana abastada de Pádua, com Petrúquio, um homem sem refinamento, mas esperto. Ela é pouco propensa a submissões de qualquer espécie, um tanto abrutalhada nas reações e, de modo pouco usual em seu tempo, rebelde à autoridade masculina que não a do pai, Batista. Tem uma irmã mais nova chamada Bianca, doce e desejada por muitos jovens. Bianca só poderia se casar depois de Catarina, por determinação de Batista. Petrúquio, interessado no dote e talvez em demonstrar a força de sua masculinidade apresenta-se como pretendente daquela que causa temor a outros homens, que dela se afastam. Casam-se. Ele não usa de violência para dominá-la, mas sim de artimanhas que são o esteio de comicidade da peça. Muito importantes são as trocas de identidades que fazem vários personagens ao perseguir seus intuitos. No final, Catarina passa a mostrar-se completamente obediente ao marido, talvez sua aliada, enquanto Bianca revela um lado mais independente e ousado, um tanto desqualificador para seu amado esposo.
Como em todos os textos de Shakespeare, há múltiplos planos de interpretação. O mais visível numa primeira mirada trata das relações entre os gêneros. As mulheres educadas subordinavam-se aos homens de sua família (pelo menos) na altura em que foi escrita a peça, que pode ser entendida como uma paródia dessa norma social, quase um deboche. A submissão das mulheres aos homens era algo só parcialmente verdadeiro. Os ambientes eram relativamente diversificados e o costume poderia não se aplicar em muitas situações. Fato importante é que na época a Inglaterra era governada pela rainha Elizabeth I, uma mulher muito forte, a quem todos os homens do reino estavam submetidos. Ao expectador ou leitor também é apontado que as aparências podem ser bastante enganosas. Por exemplo, Bianca demonstra maior autonomia depois de casada e é capaz de desobedecer ao homem mais próximo e “com mais direitos sobre ela”, todavia aparentava docilidade e subserviência quando solteira. Com Catarina deu-se o oposto. O que mudou? Algo realmente mudou no que cada uma delas era? As características mais essenciais de uma pessoa costumeiramente não estão tão expostas quanto se presume em seus discursos. O modo de agir socialmente pode ser condicionado por fatores que nublam partes importantes das identidades pessoais. Eventualmente há ocultamento deliberado delas para conduzir ao engano. Assim, esta comédia também fala daquilo que é feito para ludibriar, para levar os “desavisados” a comportarem-se como desejam os mais capazes de manipular e fazer valer o que querem. Talvez, uma observação de ordem política.
Na ilustração: foto de tela de Pablo Picasso (Espanha, 1881 – França, 1973)
Título da Obra: A MEGERA DOMADA
Autor: WILLIAM SHAKESPEARE
Tradutor: MILLÔR FERNANDES
Editora: L&PM EDITORES
William Shakespeare (Stratford-upon-Avon, 1564–1616) stands among the greatest playwrights of all time. Though he wrote poetry as well, it is through his plays that his genius most fully unveils itself. He portrayed not only an era, but the human spirit in all its complexity. The Taming of the Shrew is one of his best-known comedies (he also wrote tragedies and history plays).
The plot revolves around the marriage between Katherina, a young woman born into a wealthy family in Padua, and Petruchio, a man lacking refinement yet shrewd in his ways. She is little inclined to submit to anyone, brusque in her reactions and—most unusually for her time—rebellious toward any male authority other than that of her father, Baptista. Her younger sister, Bianca, is sweet-tempered and desired by many young suitors. Yet Bianca may only marry after Katherina, by her father’s decree. Petruchio, interested in the dowry and perhaps eager to prove the force of his masculinity, presents himself as suitor to the woman who intimidates all other men. They marry. Petruchio does not rely on violence to dominate her, but on stratagems—the comic backbone of the play. Also central are the exchanges of identity enacted by several characters in pursuit of their aims. By the end, Katherina appears entirely obedient to her husband, perhaps even his ally, whereas Bianca reveals a more independent, daring side, rather disconcerting to her beloved spouse.
As in all of Shakespeare’s works, multiple layers of interpretation unfold. The most immediately visible concerns relations between the sexes. Women of good upbringing were expected to submit to the men of their families—at least in the period in which the play was written. Yet the work may be read as a parody of this social norm, even as a playful derision of it. Besides, women’s submission to men was only partially true. Settings were varied, and custom could fail to apply in many circumstances. A salient fact is that England at the time was governed by Queen Elizabeth I—a powerful woman to whom all men in the realm were, in effect, subject. Shakespeare also reminds his audience and readers that appearances can be deeply deceptive. Bianca, for instance, shows greater autonomy after marriage and can openly defy the man “with the greatest rights over her,” though she had seemed docile and compliant as a maiden. With Katherina, the opposite seems to occur. What changed? Did anything truly change in what each of them was? The most essential traits of a person are usually far less exposed than their speech or manner might suggest. Social behavior may be conditioned by forces that obscure important dimensions of personal identity. At times there is even deliberate concealment, meant to mislead, to coax the unsuspecting into acting as those more skilled at manipulation wish them to act. Perhaps the play offers, among other things, a political observation.
Illustration: photograph of a screen by Pablo Picasso (Spain, 1881 – France, 1973)
Title of the Work: THE TAMING OF THE SHREW
Author: WILLIAM SHAKESPEARE
Translator (Portuguese edition): MILLÔR FERNANDES
Publisher: L&PM EDITORES
