Os comportamentos humanos são pouco passíveis de interpretações simples. Há intenções explícitas, implícitas, às vezes impermeáveis, tanto por parte de quem age como pelos eventuais observadores. Muitos enganos interpretativos costumam ocorrer. Resultados e consequências são, em grande parte, imprevisíveis.
“A Vegetariana”, romance curto da ganhadora do Prêmio Nobel de 2024 Han Kang, nascida na Coreia do Sul em 1970, venceu o “Man Booker International Prize”. Conta uma estória que provoca reflexões pelo que não está frontalmente dito. Trata de uma jovem mulher, Yeonghye, através das perspectivas de seu marido, cunhado e irmã. Ela não fala diretamente sobre si mesma, sua voz está contida no relato dos outros personagens ou narradores. O marido a elegeu por sua aparência comum e inexpressiva, por um jeito de ser pouco notável e aparentemente fácil de “conduzir”. Yeonghye repentinamente torna-se vegetariana, alegando que isto teve relação com pesadelos recorrentes. Além disso, revela mudanças também no modo de interagir com outras pessoas, parece alheia aos sentimentos que desperta nelas. O fato de negar-se a comer carne provoca manifestações hostis por parte do cônjuge e de outros familiares. Possivelmente, mais do que ter modificado os hábitos alimentares, o problema seja sua transformação mais abrangente. Isto desconcerta os que acreditavam conhecê-la bem, o que pode ter alguma relação com a crença de também conhecerem bem a si mesmos. Neste processo ela passa a ser notada e incomoda ao romper a invisibilidade. É como se ela traísse um pacto tácito estabelecido por todos, trazendo à superfície da convivência aquilo que deveria seguir nos subterrâneos do cotidiano. Mesmo que a personagem manifeste sintomas compatíveis com uma psicose ou transtorno alimentar, isto tem relevância menor no romance. O que importa circula pelos interstícios do enredo.
Han Kang aponta para a instabilidade dos significados dados aos modos de viver e, em alguma medida, sugere a precariedade das concepções sobre os outros e o mundo. Lembra o quanto se desconhece sobre o que se é e o que são as pessoas próximas. Avançar sobre o ignorado impõe perigos para os quais poucos estão preparados. Yeonghye ganha o protagonismo através da mudança do que era tomado como sua identidade e isto funciona como violação de uma ordem estabelecida. As transformações que parecem ter se iniciado com o vegetarianismo desencadeiam muitos eventos. O marido divorcia-se dela, o cunhado fica obcecado e confuso entre erotismo dirigido à moça e o florescimento de uma estética que falhara em encontrar enquanto artista perdido na carreira, a irmã mais velha, dotada de forte senso de responsabilidade, vê dissolverem-se princípios que pareciam bem estabelecidos, ao cuidar da caçula adoecida. Não há quem consiga controlar Yeonghye, que se esvai em desnutrição. A impossibilidade de exercer tal controle implica muito para todos os personagens. Denuncia algo que aterroriza e que poderia estar na crueza da carne, na animalidade. Os três narradores são impactados pelo vazio do olhar da moça. Tudo o que parecia ser extravagância ou loucura conflui progressivamente para a ausência de sentido.
O mundo vegetal não provê o abrigo desejado, não pode apagar a carnalidade. É fátua a impressão de ser simples a mudança de rumos para o animal humano. Há algo de trágico nos destinos, como no teatro grego da Antiguidade. Parecem vãos os esforços para a solidez e universalidade de sentidos no que se faz e, mais assustadoramente, na existência.
Título da Obra: A VEGETARIANA
Autora: HAN KANG
Tradução: JAE HYUNG WOO
Editora: TODAVIA
