Afonso Cruz nasceu na Figueira da Foz, Portugal, em 1971. Ouviu com interesse, desde pequeno, histórias de sua família. Viu nelas muito a ser recontado. Transformou em ficção e outras formas de manifestação artística, como a pictórica, os relatos do que estava perto ou longe. Vem publicando belos livros em que a prosa é carregada de poesia. Não propriamente pelo uso formas versificadas, mas ao fazer, no que escreve, o mundo verter beleza.
“O Pintor Debaixo do Lava-Loiças” é um pequeno romance que toma como base um evento real experimentado por seus avós. Eles deram abrigo a um pintor judeu que fugia do nazismo e que se escondeu debaixo no local onde se lavava louças na casa em que moravam (nem todos os que buscavam refúgio eram bem-vistos pela polícia portuguesa). Além de duas pinturas que pertenciam a sua família e algumas informações fragmentadas, Cruz pouco soube sobre Ivan Sors, o artista que o inspirou e ganhou o prenome de Jozef ao ser transformado em personagem.
Os pais de Jozef Sors trabalhavam na casa de um coronel chamado Möller, no interior do Império Austro-Húngaro em início do século XX. O coronel tinha um filho de idade próxima à de Jozef. Os Sors eram uma família judia. Os dois garotos tinham por companheira de brincadeiras uma menina chamada Frantiska, por quem ambos se apaixonaram.
O protagonista tinha comportamentos pouco usuais, decorrentes principalmente das peculiaridades no que enxergava à sua volta. Desenhava olhos obsessivamente. Abertos ou fechados. Eram janelas para que se vissem coisas distintas, conforme o que miravam quando se abriam ou fechavam. Ao se tornar adulto Jozef lutou na Primeira Guerra Mundial. No campo de batalha subiu às alturas em balões de vigilância e aprendeu o quanto o distanciamento dos objetos se traduzia em diversidade de compreensão sobre que seriam. Ao voltar para casa encontrou a mãe um tanto desatinada, insistindo em comportamentos que negavam a morte de seu pai, ocorrida em circunstâncias curiosas. Teve também que enfrentar a decepção causada pelo casamento de Frantiska com Möller. Arrancou a orelha deste, num embate físico e, depois de internar a mãe num hospital psiquiátrico, emigrou para os Estados Unidos. Voltou anos mais tarde para resgatar a mãe, em função da muita insistência do coronel Möller, mas o hospital já não existia, a mãe foi dada falsamente como assassinada por antissemitas e ele escapou de Bratislava, sua cidade natal, indo parar na Figueira da Foz, antes de embarcar de volta para a América.
Protagonizam neste livro questões sobre as múltiplas possibilidades de se interpretar o que se vive e aquilo sobre o que se é informado, desde situações bastante comuns e aparentemente evidentes por si mesmas (que não o são de verdade) a outras mais complexas ou que implicam conhecimento que não se tem sobre o que as constitui. O que alguém pode enxergar no universo em que está mergulhado, que é continente para si mesmo, para os outros e o resto, implica numerosos fatores determinantes. Estes podem não ser intuitivos e obrigam a empenho intelectual e afetivo para haja algum entendimento. No processo perduram sempre altos índices de incerteza. Tal processo contribui para a construção da identidade de cada um, como produto e produtor dela, num dinamismo que torna difíceis as descrições precisas.
A escrita de Afonso Cruz é farta em lirismo, sem perder a simplicidade. Originalidade ímpar na literatura em língua portuguesa. Trata do que talvez esteja presente na vida de todo mundo, mas ganha importância pelos olhos que enxergam desfazendo as banalizações. Olhos que vejam abertos e fechados e olhares que se desdobrem na amplidão.
Rara beleza extraída do que não é raro.
Título da Obra: O PINTOR DEBAIXO DO LAVA-LOIÇAS
Autor: AFONSO CRUZ
Editora: CAMINHO (Portugal)
