“A Caçada” é um conto de Lygia Fagundes Telles (São Paulo, 1923-2022) com jeito de estória sobrenatural. Talvez até caiba ser interpretada desta forma, mas certamente há outras possibilidades.
Narra brevemente a visita de um homem a um antiquário, onde fica fascinado por uma tapeçaria bastante danificada exposta numa das paredes. A dona da loja diz que ela foi deixada há muito por um desconhecido, na esperança de vende-la. Já de início a mulher não achou possível a comercialização devido ao estado precário da peça, mas concordou em mantê-la ali. O dono nunca mais apareceu. O protagonista retorna e sente-se cada vez mais absorvido pela cena de caça representada, como se de algum modo tivesse feito parte dela. Seu olhar primeiro dá destaque às figuras do caçador, que prepara o arco e flecha mirando uma moita e à imagem de um observador, possivelmente outro caçador. Depois fica intrigado sobre qual seria o animal caçado. Este não está aparente, só é presumido pela direção da arma. É relevante para o homem. Ele vê a seta da flecha onde a lojista só percebe um buraco deixado pelas traças.
O visitante tem sensações vívidas diante da tapeçaria. Sente o cheiro das árvores e da terra, e até o frio de um ambiente no qual sente-se cada vez mais inserido e dista de sua contemporaneidade. Ele poderia ser qualquer um dos personagens. Cresce a dúvida entre estar no papel de caçador ou de caça. Para este alvo está bem apontada a seta de Lygia Fagundes Telles. O desfecho faz o personagem dissolver-se no drama pictórico e definir involuntariamente uma posição. Ele cai no chão, atingido por um mal súbito. Caçado.
Na simplicidade do enredo, a autora conduz o leitor para uma das condições mais complexas, universais e renováveis das relações entre indivíduos, grupos e sociedades: na belicosidade, na compulsão para dominar, na voracidade destes animais humanos, comportar-se como caça ou caçador. Dificilmente qualquer uma delas é uma identidade definitiva. Pode-se incorrer em temíveis enganos ao ganhar uma convicção sobre o que se é quanto a isto. Há transformações insuspeitadas que podem tornar caça o caçador e vice-versa. O dinamismo possível nas interações entre pessoas transcende sua capacidade de controle. Os contextos mudam. Muita coisa é devorada por traças de diversas origens e outros cenários se definem, ainda que encobertos pela ruína dos que os antecederam. Nestas reviravoltas o tempo se corporifica e impera, engolindo todos, cassando ilusões como a de permanência e a de solidez das identidades.
O natural, tão natural, engana os incautos que só reconhecem como realidade o que definem com recursos simplórios e impressões estáticas. Permanecem míopes ou mesmo cegos para o imenso resto, que poderá eventualmente fazer aparições na imaginação, como um sobrenatural.
Título da Obra: A CAÇADA (parte de “ANTES DO BAILE VERDE”)
Autora: LYGIA FAGUNDES TELLES
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS
