O MOÇO DO SAXOFONE

“O Moço do Saxofone” é um conto de Lygia Fagundes Telles (São Paulo, 1923-2022). Faz parte do volume “Antes do Baile Verde”. Nesta pequena estória a autora fala de um homem rude, que trabalha para o contrabando como caminhoneiro. Ele frequenta uma pensão-bordel e neste cenário a escritora convida o leitor a articular questões sobre a heterogeneidade contida na personalidade de uma mesma pessoa. Um caleidoscópio cujas imagens cambiantes traduzem as diferentes composições. Desde os valores morais até atos que podem ser surpreendentes. O protagonista faz pensar especialmente no quanto há de contraditório ou ao menos “desarmonizado” no que os indivíduos vão revelando sobre si mesmos ao longo de suas vidas. Aliás, a realidade, mais como regra do que exceção, é tecida por contradições, não há observância das lógicas, coerências e uniformidades. As aparências em contrário, mesmo que nem sempre sejam falsas, parecem criadas para forjadas para cumprir o papel de mecanismos psicológicos defensivos.

O caminhoneiro, calejado e familiarizado com aspectos mais brutais do viver, é sensível à tristeza da música tocada por um saxofonista que ouve mas não vê enquanto faz as refeições na pensão. Esta é categorizada como um “frege-moscas”. Ele faz restrições de cunho também moral aos frequentadores. Acha que ali se come mal. Despreza o hábito de palitar os dentes dos clientes, grosseria insuportável. Seguindo como que uma trilha de revelação o leitor o vê apanhado pelo mistério da música bela e soturna e intrigado pelas razões pelas quais ela não é mais alegre e mais harmônica com o lugar. Ele mesmo estava habituado a ouvir e gostar do que ouvia no rádio, o que fazia vibrar outros tipos de sentimentos. Fica sabendo por outro comensal que o saxofonista é repetidamente traído por sua mulher, em espaço contíguo ao da execução de suas músicas. Ela parece ser uma profissional do sexo, bonita e sedutora. O protagonista sente-se atraído e ela o convida a um encontro íntimo. Ela indica a porta pela qual ele deve entrar e, talvez por engano, ele entra num quarto onde está o saxofonista com seu instrumento. Fala brevemente com o músico e fica impactado por algo no homem que traduz como imobilidade. O caminhoneiro não se desdobra em interpretações sobre significados para a atitude daquele a quem está prestes a “chifrar”, a adicionar mais uma dor, ou uma nota de lamento a ser transmitida pela música. Sai desse aposento e entra naquele em que moça que o aguardava. Fica paralisado. Não há ato sexual. Seu desejo evapora e ele abandona a pensão.

Mesmo na ligeireza da sequência de eventos e na aparente falta de clareza de motivos o caminhoneiro, transgressor, rude, recusa o cumprimento de um ato que o definiria como mais um daqueles que fazem de suas vontades mais primitivas instrumento de sofrimento de um outro. Não há certeza de nada. O casal da pensão poderia, por exemplo, ser conivente naquilo que parecia traição e humilhação, ou muitas outras justificativas seriam plausíveis. Todavia, o que realmente importa é a permeabilidade do protagonista ao que julga ser tristeza e sua recusa a fomentá-la. O que há de tosco e a delicadeza de espírito mesclam-se e tornam mais complexa a compreensão sobre o personagem principal.

Com Lygia, podemos pensar que mesmo o que parece simples e óbvio pode ser um engano. Possivelmente esta é a norma.

Na ilustração foto de obra de Allen Jones (Reino Unido, 1937)

Título da Obra: O MOÇO DO SAXOFONE (em “Antes do Baile Verde”)

Autora: LYGIA FAGUNDES TELLES

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

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