UM ENCONTRO

“Um Encontro”, o segundo conto da coletânea “Dublinenses” de James Joyce (Irlanda, 1882 – Suíça, 1941) tem por narrador e protagonista um menino em idade escolar. Ele e seus amigos têm gosto pela aventura. Costumam brincar como se estivessem no “Velho Oeste” americano. Querem viço, movimento, não a monotonia que os aprisiona no dia a dia aborrecido. Habitam um ambiente sem colorido, quase oposto ao clima de vitalidade que desejam. Na estória o personagem principal planeja um dia “diferente” com dois companheiros, faltando à escola e viajando por balsa para um local próximo. A transgressão ao “matar aula” e visitar um local que está mais ao alcance da imaginação do que da experiência concreta torna-se algo excitante. Dois garotos seguem o planejado.

A pequena viagem não os transporta para um mundo realmente vigoroso e com novidades aguardadas. Todavia, encontram por acaso um homem idoso que, por vias inesperadas, retira-os de seu marasmo e faz com que desviem a atenção do sentimento de decepção quanto às descobertas e vivências que não tinham tido na excursão. Este terceiro personagem comporta-se de modo a sugerir intenções perversas, aproximando-se dos meninos que não conhecia e tentando estabelecer diálogos insidiosos que começam com uma espécie de desafio literário, citando autores como Walter Scott e Lord Lytton, e desembocam em falas sobre interações de cunho sexual com meninas. O narrador considera as falas do desconhecido excessivamente “liberais”. Fica a impressão de que o interesse maior do homem era a sexualidade dos garotos. Num certo momento o homem afasta-se deles, mas se mantem à vista, masturba-se. Seu ato não é explicitado no texto, mas veementemente sugerido. Isto perturba um dos meninos, que sai na perseguição de um gato e escapa da cena. O outro volta a conversar com o velho, que agora passa a falar em punição violenta de meninos rebeldes ou grosseiros, diz que deveriam ser chicoteados. O protagonista surpreende-se com o interlocutor, levanta-se do chão onde estava sentado e chama pelo outro garoto para que possam ir embora e encerrar o evento que se tornara mais abertamente ameaçador.

Joyce mostra arrojo ao tocar em temas difíceis, como pedofilia e talvez outras formas de perversão. Também ao apontar para a inquietação dos jovens (elementos de potencial renovação) e seus riscos, o que tinha especial significado no contexto em que vivia. Alude a matérias sensíveis através da ficção, com variadas possibilidades de interpretação. Numa mirada de primeiro plano enxergam-se os contratempos que podem afetar os que buscam o novo, os esforços de crianças para contornarem a falta de graça da realidade, assim como a imprópria e perigosa sedução delas por adultos. Todavia, cabe pensar em metáforas relativas às condições dos irlandeses no tempo de Joyce, talvez identificados com crianças abusadas.

Parte do povo irlandês sentia-se gravemente injustiçada pela falta de soberania de sua pátria diante da Inglaterra e pelo modo como acreditavam que os ingleses os viam. A população estava dividida em relação a posições políticas e demandas. Havia os que queriam permanecer unidos aos ingleses e os que queriam ampla independência. As religiões também eram motivo de conflitos importantes dentro do País (entre católicos e protestantes). A língua local, o gaélico, estava desaparecendo, cedendo lugar ao inglês, o que não era bem-visto por muitos. Havia pobreza em múltiplos aspectos. Um número expressivo de pessoas percebia-se como vítima de circunstâncias perversas. Rebelar-se contra a situação vigente podia ser uma atitude vista como heroica por uns e como algo tão infantil como uma brincadeira de “mocinho e cowboy” por outros. Uns discutiam como produzir transformações que fizessem valer direitos dos irlandeses, como dignificar e modernizar a vida lá e outros imobilizavam-se ou mobilizavam-se para manter a situação como estava. O Reino Unido ainda não tinha sido constituído como uma união política, isto se deu em 1922. As relações entre os países que o formam eram instáveis e entendidas de modos diferentes por ingleses e demais nacionalidades. A Irlanda ainda não estava oficialmente dividida em dois países, mas não havia consenso ou união verdadeira.  

Como neste conto, a produção literária de James Joyce foi sempre fiel a sua realidade, ao ser irlandês no período em que viveu. Um realismo modernista em que trata de questões que também são universais.

Na ilustração foto de tela de Albert Gleizes (França, 1881-1953)

Título da Obra: UM ENCONTRO (parte de “DUBLINENSES”)

Autor: JAMES JOYCE

Tradutor: CAETANO W. GALINDO

Editora: PENGUIN/COMPANHIA DAS LETRAS   

An Encounter

An Encounter, the second story in James Joyce’s collection Dubliners (Ireland, 1882 – Switzerland, 1941), is narrated by a schoolboy who also serves as its protagonist. He and his friends are drawn to adventure, to the imagined vigor of the American “Wild West.” They crave movement, not the gray monotony that traps them in their dull daily routines. The boys live in an environment drained of color, almost the antithesis of the vitality they long for. In the story, the main character plans a “different” day with two of his companions: they will skip school, take a ferry, and explore a place just beyond their familiar world. The transgression of truancy—and the prospect of setting foot in a space shaped more by imagination than by concrete experience—fills them with excitement. In the end, only two boys carry out the plan.

Their small journey does not, however, transport them into the world of novelty and vigor they had envisioned. Instead, they encounter an elderly man who, by wholly unexpected means, breaks their boredom and redirects their attention from disappointment to discomfort. This stranger behaves in a way that suggests dark, perverse intentions. He approaches the boys—whom he does not know—and begins a curious conversation that opens with literary references (Walter Scott, Lord Lytton) but soon slides toward disturbing comments about sexual relations with girls. The narrator finds the man’s talk alarmingly “free.” Beneath the surface, it becomes clear that the man’s true interest lies not in literature but in the boys themselves.

At one point, the man steps away but remains in sight; Joyce’s language leaves little doubt that he masturbates—a fact never stated directly but powerfully implied. One of the boys, uneasy, wanders off after a cat and thus avoids the scene. When he returns, the old man has changed his tune: now he speaks with fervor about punishing disobedient boys, about whipping them. The narrator, unsettled, rises from the ground and calls to his friend. It is time to leave—time to end what has turned into a quietly menacing encounter.

Joyce demonstrates boldness in addressing difficult themes—pedophilia, perversion, moral hypocrisy—alongside the restless energy of youth, that symbol of potential renewal. His fiction handles these fraught subjects obliquely, opening multiple avenues of interpretation. On one level, An Encounter exposes the risks faced by those who seek adventure, the disillusionment of children attempting to escape a colorless world, and the dangers posed by predatory adults. Yet it also lends itself to metaphorical reading: the Irish under British rule as abused, manipulated, and infantilized.

Many Irish people of Joyce’s time felt profoundly wronged by the lack of national sovereignty and by what they perceived as England’s contempt. Society was divided: some advocated independence, others preferred union. Religious differences—between Catholics and Protestants—deepened the fractures. The native Irish language, Gaelic, was disappearing under the dominance of English. Poverty, both material and spiritual, prevailed. A sense of victimhood and stagnation permeated the nation. To rebel against such a condition could appear heroic to some, childish to others—just another “cowboy game.” Transformation seemed possible, yet unreachable.

Like this story, all of Joyce’s work remained faithful to his Irish reality, even as it transcended it—his modernist realism reflecting both a local and a universal condition.

Illustration: photo of a painting by Albert Gleizes (France, 1881–1953)

Title of the Work: An Encounter (from Dubliners)
Author: James Joyce
Translator: Caetano W. Galindo
Publisher: Penguin / Companhia das Letras

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