MISERERE

A palavra “miserere” é latim. Conhecida pela ligação com um salmo do Velho Testamento e com o rei David, implica invocação de misericórdia, piedade, compaixão. Tema de canto litúrgico da igreja católica, que também inspirou compositores como Mozart, foi escolhida pela poetisa Adélia Prado (Divinópolis, MG, 1935) para título deste livro.

Adélia Prado invoca e canta o cotidiano com o qual se constroem as vidas. Este é o cerne de sua obra toda, feita com os infinitos do dia a dia.

Nascida numa pequena cidade de interior, onde tem vivido, ela olha com agudeza e lirismo para o universo que a contém, que a abriga, nutre e penetra sua alma com todo o bem e todo o mal, assim como é penetrado por ela. Ela e o universo são o mesmo todo. Não há miudezas ou grandezas que o sejam para sempre. Tudo importa e troca de função numa dança que não cessa, que faz cantar (não o contrário). Ela faz-se sempre parte do concerto do mundo, mesmo quando não o compreende, reconhecendo a imensidão do que desconhece, temendo-o por vezes, mas bendizendo-o e comemorando-o sempre. É o que há, é disso que ela fala.  

Miserere conjuga força com a inevitável fragilidade das pessoas, quaisquer pessoas, e de tudo o que é vivo. É feminina de um modo que não se pode afirmar com certeza em que consiste a feminilidade, mas sua condição de mulher faz aparições em seu jeito tão próprio de dizer o que ela é e o que é o mundo que lhe tem. Se alguns acentuam misticismo nestes poemas talvez não atentem para os sentidos que Deus pode ter para a autora. Grifa-se religiosidade como uma crença num catolicismo mencionado e logo antecipado como parte de um modo de ser. Parece haver muito mais e algo bastante diverso do que convencionalmente toma-se por religiosidade. Talvez caiba espiritualidade amalgamada com espirituosidade. Nisto, respeito, homenagem, contestação e irreverência relativos ao que constitui o viver. Deus não é personagem que represente perfeição, magnificência ou submissão como e para a salvação. Não é sobrenatural. Ele é morte, além de vida. É Aquele a quem se convoca furiosamente no enorme desconcerto da incompreensão do que acontece ou não acontece. É Aquele a quem são dirigidas as orações não formalizadas para que a esperança sobreviva ao desespero. Mas Dele não depende o sentido da vida. Este reside nos olhos de quem o pode ver ou construir. Uma maneira de abençoar o que vai dentro de todos os homens e o que os cerca. Celebração.

Ricos poemas, para serem recitados muitas vezes, em diferentes ritmos, do profundo silêncio aos mais altos sons. “Hetero-salmos”, que prometem somente o que pode ser prometido e instam a persistir através da beleza da palavra, que se faz prece e afirmação. Convite para um jeito de enxergar o mundo, para admiti-lo, cria-lo. Com misericórdia, piedade, compaixão. Cânticos que sacralizam o que é muito complexo, mas aparece como simples, ilude como banal e está em todo o lugar.

Título da Obra: MISERERE

Autora: ADÉLIA PRADO

Editoar: RECORD    



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