Há pessoas que sentem seu eu como uma veste apertada, desconfortável a ponto de desejarem substituí-lo por identidades alternativas. Isto pode ser mais ou menos intenso e consciente e encerra problemas complexos sobre o que se é, o que se deseja ser e o que se pode ser. Thomas Mann (Lübeck, Alemanha, 1875 – Zurique, Suíça, 1954) deixou entrever no conjunto de sua obra literária as questões que o moveram (ou atormentaram) bastante afinadas com esse vasto tema. Certamente não tratavam exclusivamente de reflexões sobre o homem que ele era no mundo em que vivia, mas bem mais abrangentemente, articulavam as psicologias individuais ao funcionamento das sociedades.
“Confissões do Impostor Felix Krull” foi o último romance escrito por Mann. É considerado inacabado. Aparentemente um trabalho planejado em diversos momentos de sua vida e de execução adiada. O livro conta as peripécias do protagonista desde a infância até o início da idade adulta para dar vazão a sua vontade quando o mundo não era favorável a ela. Também relata o mergulho do personagem no que era inesperado e que o seduziu, sem temores de consequências. Comete infrações, arrisca-se. Troca de identidade com um marquês que conheceu num hotel parisiense em que trabalhava servindo às mesas. Tinha vindo de um pequeno povoado na Alemanha, onde seu pai suicidara-se após derrocada financeira. Toma o lugar do nobre luxemburguês numa viagem que, imposta pelos pais, o outro não desejava fazer. Inicia o programado giro pelo planeta num trem para Lisboa, de onde partiria para a Argentina. Nesta primeira etapa conhece no vagão-restaurante um erudito. O homem de ciência, fascina-o ao falar sobre a origem da vida, a evolução das espécies e do diminuto lugar do ser humano na imensidão cósmica. A relação com o professor e posteriormente com sua família, complementando o que já havia sido relatado, permite ao leitor viajar com Mann num modo de interpretar a vida.
Felix Krull experimenta uma sensualidade que extrapola as conveniências morais de seu tempo. E, numa leitura possível para o romance, o autor põe em jogo a animalidade do homem que não pode ser inteiramente submetida pela ideia de que ele está separado do restante da natureza devido a qualidades distintas e dominantes. A dimensão mais abrangente da impostura talvez não diga respeito à fraude de autoria de um único indivíduo, Felix, fazendo-se passar por quem não é. A fraude que importa seria um tipo de ilusionismo fundamental da Cultura, que atravessaria as civilizações e que poderia ser tomado tanto como algo bom como algo mau, dependendo do contexto. Neste bojo, a repressão ou ocultação do que é mais autêntico no homem não implica, como enganosamente a muitos pode parecer, uma regulação e adequação ao funcionamento que poderia ser o melhor em cada momento. Sobressai a fragilidade da determinação do que é bom ou do que é o bem. Os verdadeiros caminhos dos indivíduos e dos povos seriam na verdade erráticos e desafiariam os mais nobres propósitos da civilidade.
O protagonista não se esforça em esconder sua bissexualidade, nem demonstra comedimento quanto ao alto valor que atribui a si mesmo em detrimento de outros, é temerário em seus atos, não se rende aos compromissos que não estejam em harmonia com a realização de algum desejo seu. Encanta-se com o que pode ser tomado como mais primevo e inevitável na existência. A redução da dimensão do humano diante da grande Natureza, que é tudo o que existe desde sempre, parece servir-lhe como alguma redenção, ainda que casual. Num aparente paradoxo, o deus do Tudo (a grande Natureza) é o Nada, que o antecedeu o engolirá em cada morte, de variadas proporções.
Um dos nortes do romance é a ironia bem-humorada. Há graça num jogo de espelhamento entre personagem principal e leitor que parece ludibriar para divertir, mas serve para revelar fundamentos da realidade que só se veem de soslaio, sem precisão. De modo muito bem acabado.
Vale sempre lembrar da biografia tumultuada de Thomas Mann, que viveu durante as duas maiores guerras da História, viu surgir o nazismo e teve que se exilar definitivamente, que nunca pode viver com liberdade a própria sexualidade e que percebeu as perversões não como manifestações do desejo sexual que descumpre uma suposta orientação naturalmente definida, mas sim como as manobras feitas entre as pessoas nas sociedades, através das quais elas tentam controlar e submeter umas às outras. É possível pensar no tratamento jocoso que o autor dá, através de seu personagem derradeiro, à compreensão do mundo a partir de ordens e racionalizações que estão sempre às margens de se mostrarem falsas, falíveis e destrutivas. Ordens criadas pelo homem em diferentes tempos que acabam por revelar a impostura das normas comportamentais que circulam nas sociedades ante a persistência dos elementos da animalidade ou a Natureza.
Título da Obra: CONFISSÕES DO IMPOSTOR FELIX KRULL
Autor: THOMAS MANN
Tradutor: MÁRIO LUIZ FRUNGILLO (também autor do posfácio)
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS
