Miguel de Cervantes Saavedra (Espanha, 1574-1616) escreveu dois livros sobre D. Quixote. Tornaram-se volumes da mesma obra, o primeiro publicado em 1605 e o segundo dez anos depois. Especialmente pela primeira parte Cervantes é considerado o criador do romance moderno. A estória desenvolve-se longamente, apresenta numerosos personagens e trata de temas variados. Predomina amplamente a prosa e a linguagem é acessível aos alfabetizados de diferentes extratos culturais. É um grande livro que se desdobra em diversas estórias e contém trechos que podem ser considerados contos articulados à estrutura do enredo. Ambientado na Espanha e, mesmo não sendo especificado o período em que se passa, é compatível com a época de vida de Cervantes. Traz questões universais sobre as ações e interações humanas e, relevantemente, quanto à percepção que o indivíduo tem de seu mundo. Tornou-se referência para escritores ao longo dos séculos. Divertiu e fez circularem ideias nas mentes de seus leitores.
O D. Quixote é multifacetado, pode ser interpretado através de diferentes perspectivas, mesmo que o autor o escrevesse sem intenção consciente de atingir alvos que seu texto atinge. Já foi muito estudado academicamente e citado em profusão. Permite que se escrevam tratados sobre ele. A primeira coisa que vale dizer é que sua leitura é muito agradável sem ser ligeira, que faz rir, enternece e estimula reflexão. Um romance que provavelmente continuará mantendo laços firmes com as contemporaneidades futuras, como tem sido até agora.
Há um eixo maior que são as aventuras de um homem de aproximadamente cinquenta anos, aristocrata sem fortuna, leitor apaixonado dos livros sobre cavalaria e sobre mitologias antigas, D. Quixano (sobrenome incerto, segundo um narrador). Ele adota o nome de D. Quixote de La Mancha, deixa sua casa e passa a viver como se tivesse sido armado cavaleiro andante, após uma cerimônia fantasiosa. Perambula pelas estradas do reino em busca de situações que lhe possibilitassem feitos heroicos. Convence um camponês de sua aldeia a acompanhá-lo como escudeiro, Sancho Pança, prometendo recompensá-lo com bens grandiosos como uma ilha ou um título de nobreza. Sancho é analfabeto e, devido à precariedade de sua educação, tem visão restrita do mundo que o cerca. Cavaleiro e escudeiro conversam bastante em suas andanças, o que dá muita cor ao romance. Ambos se mostram sábios em certas circunstâncias, mas na maior parte do tempo são vítimas da insensatez de suas crenças cegantes e distorcem fantasticamente o que veem. Tais crenças prejudicam-nos no cumprimento das necessárias tarefas cotidianas e para que zelem pela própria segurança. D. Quixote é tragado pela percepção de males inexistentes e afasta-se do que se poderia denominar de real. Mergulha em ideias delirantes e ilusões poderosas e duradouras. Nunca se deixa convencer por explicações lógicas ou evidências que neguem aquilo em que acredita tão ferrenhamente. Sancho crê em seu senhor e espera conseguir grandes benefícios materiais com as promessas que D. Quixote. A cavalaria andante, existiu mais ou menos como uma instituição nobre e privada do período medieval e já estava extinta ao tempo de Cervantes (e de D. Quixote).
Entre as o muito que se pode ler, valorizam-se comumente os referidos atos tresloucados de D. Quixote, como a famosa passagem em que luta com as pás de um moinho tomando-o por um gigante a combater. No entanto, pouco é revelado da vida pregressa do cavaleiro, sabemos dele somente o que se revela em sua atualidade. As mais profusas aventuras residem nas saborosas estórias com que ele se depara em sua trajetória e tece em seus discursos. Elas contribuem para criar outra camada de sentido ao conjunto.
Entre os temas que podem ser elencados está a complicada relação do ser humano com a realidade. Esta, mesmo que de apreensão inexata, impõe limites para sua interpretação pragmática. Os dois protagonistas não transitam pelas vias do consenso e da racionalidade. Neste bojo transparecem contradições que povoam o universo deles. Fazem lembrar o que acontece com o homem em outros contextos. Há mais descaminhos do que rotas certeiras. A credulidade torna-se recurso amplamente utilizado para dar sentido à vida ou escamotear o tanto que se ignora dela, assim como para o pretenso bem agir. Buscar o que é mais verdadeiro e agir de acordo com isto parece uma dificuldade que habita os seres humanos, atravessando os tempos. É um desafio que exige talvez mais coragem e humildade do que se pensa. Cavaleiro e escudeiro estão longe destas prerrogativas. As intenções de D. Quixote são nobres, altruístas e as de Sancho Pança mais voltadas para desejos pueris. Nunca obtêm o que idealizam. Acabam por sofrer e causar danos. O “cavaleiro da triste figura”, epíteto de d. Quixote, e seu escudeiro são vistos como bufões pelos que os observam com alguma lucidez. Uns sensibilizam-se e tentam protegê-los e resgatá-los da vida insuspeitadamente temerária outros somente se divertem, aproveitam-se deles ou se ressentem por seu comportamento.
D. Quixote e Sancho representam algo que faz parte da maioria das pessoas, em qualquer época e contexto: a ingenuidade (o que nem sempre equivale à falta de inteligência) e a necessidade do apoio em crenças com impermeabilidade às evidências e inferências lógicas. A defesa intransigente de valores e de suposições acaba por cegá-los e vitimá-los, arrastando também outros. Há comédia, o riso é inevitável, mas a tragédia está sempre à espreita.
Cervantes discute em diversos momentos o papel da arte e da cultura, seu lugar na formação dos indivíduos. Faz referências a fatos históricos, a mitos e a obras literárias. Usa frases refinadamente cheias de ironia para tratar da imensa dificuldade das pessoas em aquilatarem o que experimentam e em se protegerem das armadilhas do engano. Deixa entrever que as principais ameaças não são sobrenaturais, mas bastante naturais e frequentes.
Título da Obra: D. QUIXOTE DE LA MANCHA
Autor: MIGUEL DE CERVANTES
Tradutor: ERNANI SSÓ
Editora: COMPANHIA DA LETRAS/PENGUIN
Miguel de Cervantes Saavedra (Spain, 1574–1616) wrote two books about Don Quixote, which together became volumes of a single work: the first published in 1605, the second a decade later. Owing above all to the first part, Cervantes is often regarded as the creator of the modern novel. The story unfolds at length, presenting a wide array of characters and a wealth of themes. Predominantly in prose, accessible to literate readers across social strata, it is a vast book that branches into many stories, some of which could well be considered short tales embedded within the larger narrative. Set in Spain, and though the precise period is never specified, it reflects Cervantes’ own time. It raises universal questions about human action and interaction, and—crucially—about the individual’s perception of the world. Across the centuries it has become a reference point for countless writers, entertaining while seeding ideas in the minds of its readers.
Don Quixote is a multifaceted work, open to interpretation through a multitude of perspectives, even if Cervantes did not consciously intend the breadth of resonances his text has provoked. It has been the subject of vast academic scrutiny and endless citation, a work upon which entire treatises can be built. The first and most vital point, however, is that the novel remains an inexhaustibly delightful read: never frivolous, yet brimming with laughter, tenderness, and reflection. It is a romance destined, as it has been for four centuries, to sustain firm bonds with future contemporaneities.
At its center are the adventures of a man of about fifty, an impoverished aristocrat and ardent reader of chivalric romances and ancient myths—Don Quixano (his surname uncertain, according to one narrator). Assuming the name Don Quixote de la Mancha, he leaves his home to live as if he had been formally dubbed a knight-errant after a fanciful ceremony of his own devising. He roams the roads of the realm in search of occasions for heroic deeds. He persuades a peasant from his village, Sancho Panza, to accompany him as his squire, promising him extravagant rewards—a noble title, perhaps, or even an island. Illiterate and constrained by his limited education, Sancho’s vision of the world is narrow. Their endless exchanges along the road give the novel its unique color. At times both master and squire display flashes of wisdom; more often they are the hapless victims of their own blind beliefs, fantastically distorting all they encounter. These illusions not only endanger their daily survival but estrange them from any semblance of reality. Don Quixote succumbs to the perception of imagined evils, plunging into powerful and lasting delusions. He refuses all evidence and logic that would contradict his fierce convictions. Sancho, for his part, trusts in his master’s promises, hoping to reap material rewards. Yet by Cervantes’ time, the knight-errant tradition had long since vanished, a relic of the medieval world.
Of Don Quixote’s innumerable misadventures, the most celebrated remains his attack on the windmills he mistakes for giants. Little is told of his earlier life; what we know of him emerges only in his present wanderings. The richest episodes are the vivid stories he encounters and recounts, adding further layers of meaning to the narrative tapestry.
One of the novel’s deepest concerns is humanity’s fraught relationship with reality itself. However imperfectly perceived, reality imposes limits upon interpretation and action. Neither Quixote nor Sancho navigates by consensus or reason; instead, contradictions flood their world, mirroring the human condition in any age. Missteps abound; credulity is employed as a tool to grant meaning to life or to mask what remains unknowable—an expedient for action, if not for wisdom. To seek truth and to act accordingly proves a challenge requiring more courage and humility than either man possesses. Quixote’s aims are noble, altruistic even, while Sancho’s desires are childish, material. Neither attains what he dreams; both suffer and cause harm. The “knight of the sorrowful countenance” and his squire are viewed as buffoons by those who see them clearly—some with pity and a wish to protect, others with mockery, exploitation, or resentment.
Quixote and Sancho embody traits universal to humankind: innocence (which is not always the absence of intelligence) and a reliance upon beliefs impervious to reason or evidence. Their obstinate defense of values and suppositions blinds and ensnares them, dragging others down in turn. There is comedy, abundant laughter, but tragedy is ever at hand.
Throughout, Cervantes reflects upon the role of art and culture in the shaping of individuals. He alludes to historical events, myths, and literary works. His irony—refined, incisive—exposes the immense difficulty people face in grasping what they experience and in guarding themselves against the snares of error. Implicit is the recognition that our greatest perils are not supernatural, but all too natural, and common.
Title: Don Quixote de la Mancha
Author: Miguel de Cervantes
Translator: Ernani Ssó
Publisher: Companhia das Letras / Penguin
