PRINCÍPIO DE KARENINA

“Ana Karenina” de Liev Tolstói começa com uma afirmação que se tornou famosa: “Todas as famílias felizes se parecem, todas as infelizes são infelizes à sua maneira.” Tal dito foi inspiração e, em alguns aspectos, referência para “Princípio de Karenina”, romance do português Afonso Cruz (Figueira da Foz, 1971). Todavia, o criativo Cruz faz trajetos bastante diferentes dos seguidos por Tolstói.

“Princípio de Karenina” é um livro curto que trata de temas fundamentais. Com delicadeza, lirismo e muito sabor. O cerne talvez esteja nas questões a respeito da felicidade e infelicidade, como pode o ser humano buscar uma e evitar outra e o quanto estes contrários não são excludentes entre si através do olhar perspicaz do autor. A estória fala de um menino que tem um pé malformado, é criado por pai muito rígido e fechado, com fobia do mundo que o ultrapasse, e pela mãe submissa que abdica de dizer o que pensa e sente. Ele estrutura-se a partir dos preceitos paternos. Embrulha-se em si mesmo, refugia-se no que lhe é próximo e conhecido. No cenário doméstico também há uma empregada, presente há muito e dona de um lugar importante no enredo. Para o pai sempre foi fundamental evitar tudo o que estivesse distante do lar, o espaço estrangeiro. Ele morre quando o protagonista era ainda jovem. Este, casa-se e passa a comandar os negócios da família. Contrata uma vietnamita para substituir a empregada da casa, já em idade avançada. O patrão e a nova funcionária apaixonam-se e tornam-se amantes. Ele descobre as belezas do que lhe era estranho, formas de felicidade clandestina e forasteira. É profundamente tocado pelo inusitado amor. Surge um universo para além do discurso do pai. A moça, que vinha da Cochinchina, engravida e retorna ao país de origem, onde tem uma filha. O homem só a vê quando adulta, uma única vez, anonimamente. O encontro inunda-o de duradouro regozijo, mas acaba por determinar um futuro trágico.

O medo do desconhecido, do diferente e do distante é atávico no ser humano. Também o é a necessidade de eliminar complexidades e olhar para a vida com lentes redutoras, como se tudo pudesse ser simples e claro. Tais condições e necessidades, assim como suas impossibilidades são tratadas com muita sofisticação pelo autor. As frases vão desnudando contradições essenciais. Transformam-se em percurso para o leitor chegar ao coração da trama, que pulsa para mostrar o que está vivo em segredo: uma espécie de verdade radical sobre a natureza do que se pode experimentar como algo que nunca é puro ou absoluto. Assim são os sentimentos, como felicidade e infelicidade. Há sempre um imbricamento entre um sentimento e muitos outros que lhe são afins ou díspares, incluindo seu contrário. Mesmo não parecendo, felicidade e infelicidade coexistem, mescladas ou em contiguidade; determinam sentidos uma para a outra, não se eliminam reciprocamente como aparenta ser em apreciações mais simplistas. Muito interessante é o desfecho do romance em torno deste tema.

Afonso Cruz atravessa múltiplas dimensões da frase de Tolstói, tece entendimentos, opera com precisão as palavras para que fecundem a sensibilidade do leitor. Não trabalha para contradizer o autor russo e sim para construir interpretações distintas e fomentar a busca do que não está próximo, à vista, do que é estrangeiro à intuição. Esgarça temores e fobias. Contempla tópicos importantes com beleza formal e riqueza de pensamento. “Princípio de Karenina” é brilhante.

Título da Obra: PRINCÍPIO DE KARENINA

Autor: AFONSO CRUZ

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

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