HELGA

Ao longo da vida os entendimentos do que aconteceu e das próprias ações praticadas podem mudar. O tempo altera as perspectivas de análise. Há sempre a possibilidade de distorções por inexatidão da memória ou mesmo peculiaridades de interpretação. São comuns diferenças importantes de significação para o que se viveu em momentos distintos de reflexão.

Os comportamentos traduzem características de personalidade dos indivíduos, incluindo seus valores morais, recursos intelectuais, determinação, capacidade para a empatia e solidariedade, etc. Pesam os contextos sociais e psicológicos em que ocorreram. O modo de funcionamento ético conta muito.

Em “Helga”, conto que faz parte do volume “Antes do Baile Verde”, Lygia Fagundes Telles (São Paulo, 1923-2022) fala de transformação moral. Um adolescente, filho de alemã e brasileiro, passava “temporadas de formação” na Alemanha do período entreguerras, nos anos 1930. Homem jovem, acabou lutando pelo país da família materna sem convicções ideológicas e nem muita compreensão sobre o que era o nazismo e outros problemas envolvidos no conflito. Quando a guerra acabou ele permaneceu na Alemanha para não ser preso como traidor da pátria brasileira e conheceu Helga, moça que o encantou. Ela tinha perdido uma das pernas num bombardeio e usava prótese. A despeito da atração pela jovem, de admirá-la e amá-la, cometeu um ato vil do qual ela foi vítima. O sentido do que ele fez mudou e avolumou-se com o amadurecimento do protagonista. Implicou a culpa que não sentira na ocasião de seu ato. Isto reconfigurou o conjunto de valores que balizavam suas atitudes. Trouxe-lhe a percepção de debilidade de seu caráter no passado. Mais ainda, deu a dimensão trágica das condutas marcadas pela falta de exercício da ética.

Lygia Fagundes Telles põe em destaque o impacto determinado pela assunção da responsabilidade pelo que se faz, pela ciência sobre a magnitude dos danos que a leviandade de uns pode causar a outros. Lembra da imprescindibilidade da reflexão crítica e da coragem necessárias para encarar o mal que se pratica. Algo talvez menos frequente do que o desejável.

Uma estória curta, forte e bonita.

Na ilustração foto de pintura de Moïsle Kisling (Polônia, 1891 – França, 1953)

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