As sociedades atuais parecem caminhar para polarizações ideológicas em grau maior do que ocorria no passado. A pluralidade de ideias, seu compartilhamento, debates educados e produtivos e as ações políticas que mereçam este nome tornam-se cada vez mais escassos. As singularidades individuais minguam e com isto o pensamento autônomo e criativo. As lideranças são exercidas por aqueles que carecem da força de ideias bem fundamentadas, lógicas e com visão mais larga do bem comum, passando a ser assumidas pelos que têm maior poder de convencimento através de ilusões e sedução com propostas de manobras primitivas para lidar com o descontentamento mal compreendido quanto a sua natureza, origem e possíveis soluções. As transformações têm sido rápidas e os problemas sociais aparentemente agravaram-se com os radicalismos e fomento de atitudes belicosas entre humanos. Neste bojo vêm sendo abordados (usados) problemas relacionados ao racismo, entre as muitas formas de heterogeneidade que servem como pretextos para iniquidades.
Especialmente no que se refere aos pretos e brancos, vários países passaram a adotar as divisões estanques, sem nuances, em amplo sentido, indo da cor da pele aos comportamentos sociais. Os mestiços, geralmente maioria em algumas sociedades, como a brasileira, passaram repentinamente á invisibilidade. Têm de se proclamar pretos ou brancos. O mestre em sociologia/antropologia e escritor baiano Antonio Risério (Salvador, Bahia, 1953) tratou deste tema em “Mestiçagem, Identidade e Liberdade”.
“A miscigenação diz respeito exclusivamente aos genes, o sincretismo diz respeito exclusivamente aos memes e a mestiçagem termina por envolver ambos os dois – genes e memes. É biocultural.” Convém falar sobre o sentido do termo meme, que vem da palavra grega “mimesis” que significa imitação. Os indivíduos copiam e difundem ideias e comportamentos. Talvez a popularização do uso da palavra meme tenha se devido à influência do zoólogo Richard Dawkins, mas o conceito tem relação com modos de comportamento milenares entre os humanos. O termo ganhou maior dimensão com a internet ao “viralizar” uma informação (frequentemente de cunho jocoso), mas o fenômeno do compartilhamento e influência, derivando para imitação comportamental e impacto cultural de modo nenhum surgiu no ambiente digital ou restringe-se a ele.
Antonio Risério chama atenção para o fato de que além do Brasil ser um país de população mestiça, não é realmente um campo de batalha entre dois tipos de pessoas com as cores de pele preta e branca. Mesmo havendo pensamento e atitudes preconceituosas que corroem a bem-vinda integração social no País. Aliás, como ele bem pontua, pretos e brancos são minorias aqui, onde misturam-se pretos, brancos, amarelos e vermelhos.
Vale destacar em seu texto o descarte da estupidez de qualificar uma pessoa quanto a seu caráter e funcionamento ético ou antiético a partir da cor de sua pele ou de outros aspectos isolados da anatomia e modo de ser, como gênero, orientação sexual, religião e ideologia. Ideias fundamentalistas quanto ao determinismo das características de alguém podem implicar segregação e destrutividade.
Há muitas definições para o termo identidade. Geralmente ele diz respeito ao conjunto de características através dos quais indivíduos ou grupo de indivíduos percebem a si mesmos e são percebidos pelos outros. As autodefinições dificilmente coincidem com aquelas feitas por outros que não o próprio indivíduo ou grupo. Também não são traços imutáveis, pois transformam-se ao longo do tempo e têm funções distintas em planos diferentes e mesmo contraditórios no conjunto de caracterizações que “veste” os humanos. O “identitarismo” é um termo associado ao posicionamento político que defende interesses de grupos que se identificam a partir de características comuns. Há uma tendência à demarcação destes grupos como segmentos diferenciados dentro das sociedades. Nos casos mais radicais forma-se uma oposição divisionista concernente a partes específicas de uma sociedade versus outras partes ou ela como um todo. Risério aponta para a ineficácia e perigos da adesão ao identitarismo quando se visam melhorias na luta por sociedades mais justas. As batalhas contra o racismo seriam vitimadas por estas estratégias, pois elas promovem atitudes racistas entre os que, a elas aderindo, dizem-se antirracistas. O autor menciona que as ideologias de extrema direita e de parte das esquerdas tornam-se tão parecidas que são como “gêmeos inimigos”. “Desse ponto de vista, nada mais parecido com a esquerda identitarista do século XXI do que a direita identitarista do século XX.”
Antonio Risério vê o identitarismo como “reação ou resposta a dois processos histórico-culturais contemporâneos”: à globalização e à “fragmentação ou pulverização daquele sujeito uno ou unificado que vinha sendo, até outro dia, a marca registrada do indivíduo moderno.” Acrescenta que o identitarismo constituiria movimentos anti-iluministas, assim mais presos a crenças do que a evidências e uma “regressão do universalismo ao tribalismo”. Tais movimentos criariam arquétipos insustentáveis à análise mais rigorosa, como o do “macho ocidental branco”, com o uso de estereótipos prejudiciais à minoração efetiva dos problemas sociais. A criação do “grupocentrismo identitarista” acabaria por oprimir o indivíduo na multidimensionalidade de sua identidade, a qual incluiria grande diversidade aspectos operando separada ou conjuntamente, com a plasticidade fundamental à sintonia com o dinamismo do mundo.
Cria-se com o identitarismo uma forma de aprisionamento do indivíduo ou grupo, antes rico na diversidade, sujeitando-os a restrições empobrecedoras, ao confinamento numa só característica à qual seria impingido um significado lacrado. Há falsificação e mutilação. Assim, engendrar-se-iam mecanismos de supressão de liberdades fundamentais aos indivíduos e coletividades. As pessoas teriam que deixar de ser o que realmente são numa multiplicidade de aspectos que estruturam universos em cada uma delas, para transformarem-se em peças de uma engrenagem. Na maior parte das vezes sem terem consciência disto. Sendo mentalmente colonizadas por ideias que na verdade oprimem-nas quando prometem libertá-las e aumentar-lhes o bem-estar. A liberdade como valor maior (em que pesem imprecisões em suas definições) seria posta de lado por visões estreitadas de mundo, pelo radicalismo esterilizante.
Desigualdades e injustiças presentes no tecido social podem ter relação com a vulnerabilidade de setores específicos da sociedade, mas não podem ser processados ideologicamente para transformarem-se em questões de racismo, por mais que elas existam e importem.
O ensaio sociológico de Risério tem o mérito de trazer à pauta temas que devem ser bem pensados. Ele os elenca com ideias inteligentes e discussões de farta argumentação. Valoriza a profundidade das abordagens. Empreende uma batalha contra a automatização de pensamento dos indivíduos, carentes de reflexão mais cuidadosa e sedentos de pertencimento a grupos que se anunciam como mais capazes e justos no tratamento de problemas sociais. Assim, contribui para afastar reducionismos que submetem indivíduos e coletividades, transformando-os em engenhocas toscas que põem em risco as duras conquistas do processo civilizatório.
Título da Obra: MESTIÇAGEM, IDENTIDADE E LIBERDADE
Autor: ANTONIO RISÉRIO
Editora: TOPBOOKS
