A relação do homem com a natureza e a compreensão de seu lugar nela vem sendo um desafio à razão desde que surgiu o interesse em tratar do tema. Os animais humanos nunca se separaram inteiramente do reino animal geral, por mais peculiaridades que apresentem em relação a outros bichos. Ao mesmo tempo que isto pode horrorizar, também há quem lance mão desta noção de pertencimento e mesmo a ideias de abandono das conquistas da civilização e imersão numa vida primitiva como uma atitude positiva para a sobrevivência da espécie. As crenças multiplicam-se independentemente de quaisquer ancoragens na realidade.
Nastassja Martin (Grenoble, França, 1986) é uma antropóloga dotada de grande coragem e experimentou mergulhos ousados em mundos que se distanciam daqueles que representam conforto e segurança para a maioria dos outros indivíduos. Como pesquisadora, viajou e residiu em regiões inóspitas do planeta como o Alasca e os ermos da grande península de Kamtchatka na Rússia oriental. Escreveu sobre as expedições para realizar pesquisas e nisto deixou entrever sua personalidade, transcendendo o exercício da profissão. Vem dedicando-se a estudar as inserções humanas em universos mais amplos, em especial as coletividades que permanecem às margens da civilização convencional. “Escute as Feras” é um de seus livros que faz o leitor viajar com ela e para ela.
Parte do impressionante fato dela ter sido atacada por um urso em Kamtchatka e gravemente ferida. Conta o que lhe aconteceu na luta pela sobrevivência. Ela foi socorrida em hospitais russos até estar em condições de remoção segura para a França. Passou por cirurgias na Salpetrière, em Paris, e depois foi também tratada na região de Grenoble. Passou por momentos de intenso sofrimento. Todavia, o que é mais relevante em seu relato são as reflexões sobre a animalidade e o animismo. O que não deixa de resvalar pelos complicados processos através dos quais se constroem as identidades pessoais e grupais. Algumas peculiaridades atribuídas aos seres humanos são postas em xeque. O interesse por povos que vivem em condições mais primitivas e próximas da natureza sugere mais do que formulações de perguntas e estratégias de respostas para questões acadêmicas. A singularidade da autora tem importante papel do que diz sobre a vivência tão ameaçadora em seu trabalho de campo. Ela fala sobre suas concepções a respeito de forças que se constituem no âmago mais obscuro do homem e sobre a relação disto com o comportamento dos animais, especialmente enquanto predadores. Aparentes contradições entre beleza e aspecto benévolo por um lado e violência por outro, como nos ursos, tão belos, com olhar quase terno, mas perigosos e com grande poder de destruição talvez impliquem interpretações de abrangência universal. Martin é permeável às crenças dos povos que ama e admira, como os Even. É especialmente sensível à ideia de que os animais têm alma e que há algum vínculo com a alma dos humanos. Ocupa-se de um tipo de resgate do pertencimento ao ambiente natural como um imperativo inescapável, embora negado pela civilização na qual nasceu. Parecem rondá-la certas traduções da ferocidade humana, o que possivelmente a assusta no espaço urbano de países dominados pela busca incessante de progresso tecnológico, riqueza e destinados a contundências sociais. Todavia, ela não é ferozmente afirmativa.
Ainda é possível fazer conjecturas sobre um fenômeno que pode acometer muitos indivíduos em momentos determinados ou até ser constante. Trata-se da inquietação e da angústia que emanam de um tipo de frustração existencial, algo da ordem da insatisfação e da incompletude do ser, vaga, insubmissa aos assujeitamentos, aos nomes e às teorias. Transforma-se numa dor que engole a alma. Buscam-se saídas. Há um desejo frequente por conhecer a ordem do mundo e a história, que poderia dizer algo sobre ele e sobre quem o habita, mas o insucesso na suficiência mínima desta empresa reapresenta-se incessantemente. O que está fora e o que está dentro de uma pessoa mesclam-se, confundem, desorientam. Não há geografia que dê conta de localizar o que precisa ser encontrado, definido e transformado. O inominável, o desconhecido, persiste e assombra. Parece, ambiguamente, desumano e humano demais. É brutal por furtar-se a ser apanhado e “domesticado”, incompreensível como a psicologia de um urso.
Mesmo que haja distância entre autora e leitor na compreensão do mundo e relação com a natureza, a leitura é sedutora.
Título da Obra: ESCUTE AS FERAS
Autora: NASTASSJA MARTIN
Tradutores: CAMILA VARGAS BOLDRINI E DANIEL LÜHMANN
Editora:34

Ola! Fiquei curiosa a respeito do livro, principalmente por querer pensá-lo a partir da teoria das pulsões em Freud e da primazia do significante em Lacan.
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Vale a leitura. Obrigado por seu comentário Nidia
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