A ANOMALIA

A fantasia da existência de um duplo ou mais réplicas de cada humano ou mesmo de extensões maiores da realidade é recorrente no imaginário e de vez em quando é tema de obras literárias. Possivelmente tem diversos sentidos, conforme a pessoa e o contexto. O romance vencedor do Prêmio Goncourt de 2020, “A Anomalia” de Hervé Le Tellier, conta uma estória que lança mão deste tópico.

Um avião da Air France viajando de Paris para Nova York atravessa uma enorme nuvem de granizo. A turbulência é assustadora, mas a aeronave pousa no aeroporto de destino. Seus passageiros saem traumatizados e seguem suas vidas. Parte dos capítulos do livro é dedicada a fragmentos biográficos destes personagens. Pouco mais de três meses depois deste evento um avião idêntico, com a mesma tripulação e os mesmos passageiros e tendo passado por igual problema pede autorização para aterrissar em Nova York. Teria partido de Paris no exato momento do primeiro voo. Instala-se então em terra uma turbulência que se agiganta gradualmente, conforme são tentados o entendimento e manejo da situação.

Variadas dificuldades e busca de soluções desdobram-se na estória privada de cada passageiro. Também surgem complicações em âmbito governamental, científico e religioso. Talvez o mais curioso seja o que se evidencia quando alguém tem que lidar com a existência de um outro, que é uma duplicação de si mesmo, em que pese a diferença de experiências na vida dos indivíduos no período de defasagem entre as duas datas de chegada dos aviões. Há situações insólitas. Todavia, elas são inteligíveis e têm relação com questões que parecem mais corriqueiras quando inseridas num contexto não sobrenatural. O absurdo não deixa de conter muito daquilo que também é familiar. Contradições passam despercebidas. Há um tipo de tragicidade que preexistia em cada personagem quanto a sua identidade e modos de se relacionar com o mundo. A realidade vai sofrendo um apagamento nas bases aparentemente sólidas de seus sentidos. Ficção e rasgos de elementos verdadeiros entremeiam-se ou são partes de um mesmo “corpo”. Talvez esta seja a dimensão mais sofisticada do romance.

Quando a narrativa parece acomodar um desfecho, surge novo fato desafiador. Este ameaça a possibilidade de apaziguamento para os que sabem do ocorrido. A anomalia reapresenta-se. Como num caleidoscópio de configurações infinitas, questões de interpretação da realidade, de conexão com ela, mostram-se como enigmas que não podem ser ignorados e nem resolvidos. A destruição do que é estranho irrompe como estratégia. É posta em xeque a noção de que a racionalidade poderia dar conta daquilo em que é mergulhada.

Título da Obra: A ANOMALIA

Autor: HERVÉ LE TELLIER

Tradutora: TÂNIA GANHO

Editora: EDITORIAL PRESENÇA (Portugal)

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