Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal, Porto, 1919 – Lisboa, 2004) é bastante conhecida como poetisa. Foi muito premiada (a primeira mulher portuguesa a receber o Prêmio Camões e está sepultada no Panteão Nacional). Foi muito atuante na cultura e política do País. Escreveu também prosa e alguns não têm conhecimento desta parte de sua obra. O título do volume “Contos Exemplares” faz alusão a “Novelas Exemplares” de Miguel de Cervantes (Espanha, Alcalá de Henares, 1547 – Madrid, 1616). Ambos têm em comum tratarem de temas que tocam em questões éticas.
Os contos frequentemente demandam maior exercício interpretativo do que narrativas mais longas. São escritos com concisão e expressam ideias nem sempre inteiramente explícitas. Assim, costumam oferecer mais possibilidades de compreensão, posto que as interpretações se esteiam em muita subjetividade.
“O Jantar do Bispo” é um conto de aparência muito límpida e quase realista, mas conduzindo a outro caminho, há sugestão das intervenções de Deus e do diabo na curta trama. Um homem rico, oferece um jantar em sua casa no qual comparece o bispo local, presença fundamental à razão pela qual se dá a festa. Anfitrião e bispo têm solicitações a fazer um ao outro. O primeiro sente-se incomodado pelos sermões de um novo abade da paróquia. Este fala insistentemente da necessidade de se olhar para os necessitados e da obrigação de se fazer algo que os ajude, da caridade. O rico proprietário da casa onde acontece o jantar é nomeado somente como o Dono da Casa. Seu intuito é solicitar a transferência do abade para outro lugar. O bispo, por sua vez, deseja pedir dinheiro para restaurar o telhado da Igreja de Nossa senhora da Esperança, construída por ancestrais do Dono da Casa. No decorrer da noite surge, sem ser esperado, outro personagem que dá a impressão de alguém muito importante, cujo automóvel danificou-se nas cercanias. É feito convidado e passa a conversar animadamente com o Dono da Casa e com o Bispo. Ele está de acordo com as ideias daquele que o hospeda, ao mesmo tempo que mostra a intenção de auxiliar o bispo doando metade do dinheiro necessário para a reforma em questão. Ele e o Dono da Casa fazem cheques de igual valor para que o bispo faça o reparo no templo. Paralelamente, trafegam pela casa os empregados, que têm nomes próprios e que desde há muito receberam ordens para sempre servir comida aos pobres que ali batessem enquanto houvesse alguma luz acesa. Nesta noite, em que chove torrencialmente, pede abrigo e comida um outro homem misterioso, mas que não come e insiste em falar pessoalmente com o Dono da Casa. Não é atendido e vai embora. Também se retira o bispo e desaparece o desconhecido de aparência ilustre.
Os desfechos permanecem incompletos em vários níveis, pois o misterioso convidado acidental ao desaparecer sem que ninguém notasse parece ter feito sumir também o cheque que deixara. O bispo, a caminho de casa, atormentado por ter concordado com a transferência do abade e após encontrar e trocar rápidas palavras com o mendigo que desejara falar com o dono da propriedade e some de imediato das vistas do homem da igreja, retorna ao solar onde houvera o jantar para dizer ao anfitrião que não faria o que lhe havia sido pedido, mesmo que não pudesse efetuar a desejada reforma. Nada se conclui de fato.
Entre o muito que se pode pensar sobre as intenções da autora ao escrever este conto (parte de “Contos Exemplares”, o qual ela dedica ao marido por ter-lhe ensinado “a coragem e alegria do combate desigual”) vale pensar na importância da palavra esperança no texto: está no nome da igreja em ruínas e é mencionada em outro ponto como um sentimento em transformação com os tempos e de acordo com os recursos de cada indivíduo para lidar com seus males e temores. Para aqueles que não se sentem desafortunados em suas vidas cotidianas a palavra carrega pouca intensidade. Pouco se espera que não se possa obter com relativa facilidade. No caso dos mais desprovidos de recursos e “amarrados” às condições de precariedade em que sempre viveram, ajuda a suportar agruras e faltas extremas, alimentando a ideia de que vale esperar por algo melhor. O que talvez esteja infinitamente acima do telhado rompido da igreja em que Nossa Senhora assume o encargo de manter a esperança. A uns serve para a formalidade de discursos úteis à manutenção dos costumes e das conveniências e para outros é alimento essencial, é crença verdadeira, é o que há de maior em meio a tudo o que falta para o bem-viver. A esperança é peça do jogo de todos, dos que têm muito, dos que nada têm e dos que fazem a intermediação entre ambos os lados. Deus e o diabo perdem rapidamente o poder, são verdadeiramente evanescentes na concretude das dificuldades.
Fica em suspenso a possibilidade de restauração para telhados dos espaços destinados a abrigar os que clamam pela Providência. Especialmente quando se tornam lugares de pregação de soluções para minorar desigualdades que não sejam somente endereçadas ao divino, mas que impliquem ações terrenas. Nem Deus nem o diabo são onipresentes. Fulguram em lugares de onde somem rapidamente, sem intervenção concreta nas demandas em que são envolvidos. Adiam sempre seu comparecimento para as apresentações diretas, que dispensem intermediários, funcionando como arautos para dar notícias deles em suas eternas ausências. E, como se pode deduzir, Deus e diabo não são onipotentes.
Uma dedução plausível é que é preciso ter coragem para enxergar mais a fundo as desigualdades e para acertar o passo d entendimento com sua natureza cambiante. Contando diligência e com a sorte, talvez se possa manter alguma esperança e alguma alegria.
Título da Obra: O JANTAR DO BISPO (parte de “CONTOS EXEMPLARES” em “PROSA”)
Autora: SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
Editora: ASSÍRIO & ALVIM
