PARA ONDE VÃO OS GUARDA-CHUVAS

Afonso Cruz (Figueira da Foz, Portugal, 1971) é um dos mais criativos escritores portugueses contemporâneos. Em vasta produção literária, fala sobre temas relevantes através da prosa que parece alimentada por uma espécie de seiva poética. Suas frases, tão bonitas, fazem pulsar a alma do leitor. Além de escritor, ele é ilustrador e músico da banda The Soaked Lamb.

“Para onde vão os guarda-chuvas” é um romance premiado. Merecidamente. Parece uma extensa fábula que ao invés de ser protagonizada por animais antropomorfizados, põe em cena os próprios humanos para representarem em seus papeis sua universalidade, o que os reúne numa mesma categoria, marcada por características das quais ninguém escapa e que dificilmente cedem às forças da racionalidade e da civilização. Matéria que aparenta incompatibilidade com a razão, mas que talvez seja seu justo avesso. O local onde se passa a estória é incerto, talvez seja o Punjab, no noroeste da Índia, mas poderia ser qualquer canto do planeta. Os atores, principalmente muçulmanos, além de uns poucos hindus e cristãos, transitam pelas próprias vidas como o fazem todos os homens: buscando aquilo que não sabem bem o que é, acreditando no que não podem constatar que exista ou vendo o que se mostra contrário ao que creem. Esperam sempre por algo que prometem a si mesmos em nome de uma deidade inalcançável. Alguns personagens agem usando a fé mística de outros para realizar ações de má-fé (artimanha tão comum entre humanos). Todavia, a vida da maioria é guiada pela fé, pelo que determinam as religiões. A fé, somada a uma infinidade de crenças, desvela-se, em conjunto e infinitamente, numa das funções mais imprescindíveis da condição de ser humano. Instrumentos que servem tanto ao Bem quanto ao Mal e que são o avesso da fragilidade entranhada na estrutura das pessoas. Saber, assumir francamente a verdade crua do que se pode vislumbrar na realidade do que se vive geralmente é insuportável.

As páginas iniciais do romance são fartamente ilustradas como num conto de fadas. São um prenúncio sutil do mote do livro. O texto diz uma coisa e as figuras dizem outra, quase tudo é díspar entre imagens e discurso. Posteriormente o enredo gira em torno do núcleo familiar de Fazal Elahi e alguns outros personagens que adentram ocasionalmente o círculo de suas relações. Ele é casado com uma bela mulher que rejeita as imposições da religião e não quer ser amada somente por suas qualidades espirituais, quer ser reconhecida também através de um corpo vivo e atuante, com cabelos que possam ficar livres de véus e voar como os pássaros. Quer sexo pelo prazer. Não quer a submissão. Todavia, em sua rebeldia e dissenção abandona também o amor que lhe é devotado. E perde muito mais. A irmã de Fazal, devota rigorosa, freme por amor onde não poderia encontrá-lo e despreza, especialmente por preconceito, as manifestações de intenso afeto daqueles a quem não consegue enxergar bem. Há um primo que escreve poesia e declama com as mãos, nos gestos concentra seu poder. Ao longo do enredo o contraditório e o absurdo fazem fluir a realidade que o transcende, emergindo do fundo daquilo que é fabulado.

Uma das questões mais importantes deste belo livro diz respeito à natureza do humano. O que é isto? O que há de bom nisto? Para que haja o bem, o autor propõe ao homem uma tarefa fundamental, inescapável, que é a de dominar o predador que existe dentro dele. É preciso que indivíduos atravessem os enganos, que não se percam neles mais do que o inevitável. Além disso, os coletivos humanos carecem e devem obrigar-se a funcionar com maior razão do que as manadas, menor agressividade do que as alcateias e maior decência do que as corjas.  

É preciso promover e construir laboriosamente os milagres, pois eles não ocorrem em espaços etéreos e nem nos locais de adoração dos deuses, mas sim dentro dos homens que os procuram. Deve haver empenho para subjugar os demônios que espontaneamente brotam e se impõem, torná-los brandos, pois é sabido que não serão definitivamente extintos.

Dogma, no livro, é o nome de um cão, que vive correndo atrás do próprio rabo. E os guarda-chuvas costumam desaparecer quando mais precisa-se deles. Devem estar em algum lugar e poderão ser encontrados, desde que realmente os existam. Às vezes perdem-se para sempre e vão para onde também são despejados os sentidos mais verdadeiros do que se vive.

Uma leitura para dar prazer estético e para fazer refletir.

Embelezar a vida é muito importante.

Título da Obra: PARA ONDE VÃO OS GUARDA-CHUVAS

Autor: AFONSO CRUZ

Editora: ALFAGUARA

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