MISERICÓRDIA

Falar sobre a velhice sem a preocupação com o “politicamente correto” (e o risco inerente da hipocrisia) e utilizar o que se acredita ser verdadeiro como elemento balizador não é algo fácil. Talvez mais difícil ainda seja o relacionamento com aqueles que são próximos e envelheceram. Partem deles necessidades e demandas diferentes das que existiam e a interação com os mais jovens, especialmente os que se encarregam de seus cuidados, é posta à prova com muita frequência. Afetos contraditórios entrelaçam-se. Parece ser cada vez mais comum que as pessoas mais idosas residam em instituições especializadas em abrigá-las.

“Misericórdia” da portuguesa Lídia Jorge (Boliqueime, 1946) é um belo romance tratando deste tema. Uma mulher reside numa casa para anciãos, setenta no total, e relata seu cotidiano pelo período de um ano. Seu nome é Maria Alberta Amado ou Alberti, como é chamada por quase todos. O que conta é muito vivo. Ela dá bastante mais espaço para seu presente do que para o passado. Registra especialmente o fato de a vida recusar-se a ser despedida. Quando parece que se vai, retorna pelas frestas em que cabe. As intenções em contrário, mirando despedidas e abdicações, tendem a ser minimizadas. Novas realidades adquirem contornos fortes e afirmam a sobrevivência. Alberti tem uma única filha (escritora) e genro, além de sua história povoada por muita gente, mas é no Hotel Paraíso, onde vive quando faz o relato, que está o foco de sua atenção. Ali permanecem ativos os esforços para compreender a vida e desfrutá-la. Ela ainda se vê às voltas com o manejo dos riscos de errar na interpretação dos fatos e na interação com os outros e com a complicada busca do melhor, do correto e do justo. Como havia sido em contextos que precederam sua atualidade de mulher alquebrada pela idade. Rejeita escamotear as limitações impostas pela senescência, sentidas dolorosamente no próprio corpo e testemunhadas nos corpos dos outros. Encara-as com coragem. Com a possibilidade mais próxima de morrer crenças e valores transformam-se sem parar e ganham sentidos e serventias distantes dos que primeiro tiveram. Também é momento de novamente se deparar com o apaixonamento e com o que se transmuta em amor, mesmo quando a impermanência é quase lei.

A autora trata da velhice como um período da vida sobre o qual é preciso aprender muito. Ninguém fica dispensado desse esforço e todos podem crescer com ele, qualquer que seja a idade. Ainda que falando de idosos que vivem num ambiente que não era o seu e considerando as privações associadas a isto, a velhice não é por ela tomada como uma forma de exílio. Aquele que equivale a despedir-se da própria identidade. Exílio para o qual se vai com a presunção de que a vida já passou, esgotou-se, para onde alguém se retira ou é enviado enquanto aguarda a morte. Não é isto que Alberti experimenta. Lídia Jorge faz ver que os que alcançaram idades maiores continuam realmente vivos. Lembra que a dignidade, de direito e de dever, não passa por discursos balsâmicos e nem por recursos estéticos para fazer parecer belo aquilo que os velhos lamentam. Pretere a criação de ilusões destinadas a aliviar remorsos dos que desconsideram a vitalidade de quem envelheceu. Os velhos continuam a desejar, a se satisfazer e se frustrar e a buscar amor, que tantas formas tem. Como não deixa nunca de acontecer, desde quando se nasce.

Título da Obra: MISERICÓRDIA

Autora: LÍDIA JORGE

Editora: D. QUIXOTE (PORTUGAL)

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