A MAIS RECÔNDITA MEMÓRIA DOS HOMENS

O Senegal, na costa oeste da África, tem a cidade de Dakar como capital. Foi colônia da França até 1960. Como muitos outros países africanos, vem lidando com problemas econômicos e sociais importantes, que geram instabilidades periódicas em diversas esferas da vida no País. Faz parte de um continente dotado de grandes riquezas, mas onde as populações pouco sabem sobre elas e não as usufruem em prol do desenvolvimento que mereciam alcançar. Em Dakar nasceu Mohamed Mbougar Sarr (1990) vencedor do prêmio Goncourt (francês) em 2021 por seu romance “A Mais Recôndita Memória dos Homens”.

Acho que este é um dos melhores livros publicado nos últimos anos. Fala do interesse quase obsessivo de um jovem escritor senegalês por um livro, “O Labirinto do Inumano” e por seu autor, o compatriota T. C. Elimane. O personagem-escritor ocultou-se do mundo pouco após uma contundente polêmica promovida por críticos franceses na altura da publicação. A acusação de plágio selou a derrocada do livro, seu “cancelamento” e retirada das livrarias. São fictícios o autor (Elimane) e a obra (O Labirinto do Inumano).  Funcionam como fio condutor do enredo, que se desdobra em muitas vertentes. Pouco é objetivamente dito ao leitor sobre Elimane e menos ainda sobre o conteúdo de “O Labirinto do Inumano”. Riquíssimo é o romance real, o que podemos ler. Diz muito e com beleza. A linguagem é clara. O ainda jovem escritor real Mohamed Mbougar Sarr transborda sofisticação. Ele é profundo e original no tratamento de temas complexos, além de envolver o leitor com a vivacidade de seu olhar para o mundo, tornando a leitura apaixonante. É um livro para ser degustado e não devorado.

“A Mais Recôndita Memória dos Homens” abre espaço para muitas interpretações e para reflexão.

No intervalo entre o início e o fim da vida de cada indivíduo existe um labirinto a ser obrigatoriamente percorrido. Pode ser concebido de muitas maneiras. Numa delas representaria um tipo de “arquitetura” que modela as direções por onde se vai enquanto se vive. Incertos e contorcidos caminhos que não admitem retrocesso. Insondáveis pouco adiante do lugar onde se está. Cada um segue o seu, ainda que isto não implique incomunicabilidade com os labirintos de outros. Eles não têm semelhança com o mitológico labirinto cretense em que estava aprisionado o Minotauro, devorador de jovens atenienses, do qual Teseu conseguiu retornar, depois de matar o monstro e guiando-se pelo fio que lhe deu Ariadne. Todavia, o mito grego serve aqui como contraponto, para dar relevo às diferenças de significados dos labirintos que habitam a imaginação e os discursos. Itinerários destinados a conduzir o indivíduo ao derradeiro ponto em que todo o vivido e pensado se dissolvem em silêncio. Talvez mais bem definido como o nada.

É possível também usar a ideia de labirinto é para invocar peregrinações através da construção da História. A História é o passado. Um discurso sobreo o passado, mesmo que também seja outras coisas. O passado, como qualquer discurso, é nebuloso, fomentador de alegorias, fábulas e lendas. Exige interpretação, mais do que decifração ou descoberta. É fácil perder o rumo do verdadeiro. Trafega-se por registros de intenções e atos discrepantes, por suposições ingênuas e por mentiras deliberadas tomadas como verdadeiras, além de muitas outras confusões. Encontram-se elementos opostos como amor e ódio, crença e descrença, beleza e feiura, felicidade e infelicidade, razão e caos e, talvez os mais radicais contrários, o anseio por construir e preservar e o ímpeto de destruir (que está acima e abaixo de qualquer propósito). As palavras traem-se umas às outras (ideia expressada por Sarr), atropelam-se, perdem-se, encontram-se. Mas não são impotentes. Somente são menos precisas do que o esperado e por isso revelam menos e mais do que era pretendido. Insistem em dizer algo que se desfará em algum estágio do percurso e serão definitivamente caladas no ponto final dos labirintos por onde vão. O nada individual não tarda, o nada coletivo carece de tempo, de tanto tempo que se torna inacreditável. O fim, para aqueles que nele creem, é o nada. E o nada é inumano.

Sarr faz, por múltiplos vértices, uma profecia que ultrapassa a História depois de atravessá-la. Aborda questões que existem antes do fim, enquanto ainda é possível agir e criar narrativas. Nisto desfilam os conflitos intermináveis entre indivíduos, grupos e sociedades sempre propensos a agressões para as quais muito contam as sucessivas heterogeneidades, inevitáveis em quaisquer coletivos de humanos. Neste bojo, as diversidades aparecem pintadas com negritude e branquitude, que servem para denunciar a intolerância às identidades plurais, assentadas nas cores de peles e no que está dentro delas. Anuncia a força brutal dos absurdos usados para justificar a quebra do que é mais primordialmente justo nas relações entre pessoas.

Elimane, mesmo na obscuridade, tem muitos papeis e um deles é ser porta-voz das tragédias na diáspora dos povos africanos, que abdicam de suas riquezas, suas tradições, sua cultura, tentando a assimilação em outros universos (com frequência os dos colonizadores) pela esperança de melhor sorte. Não se trata propriamente de uma integração de elementos estrangeiros que poderiam contribuir para o desenvolvimento das sociedades dialogantes, mas de uma eliminação radical de identidades, substituindo-as pelos artifícios que transformam a vida em plágio. Humano, inumano.

Neste romance, que também é uma ode à literatura, mostrando como ela pode ser grande mesmo que potencialmente perecível, transbordam frases lindas e ideias impactantes. Algumas ideias são afirmadas, como a de que a realidade não tem contrário, pois tudo é realidade; outras são sugeridas, como a da profusão de seres que habitam um único autor ou a dos holográficos determinantes de uma história pessoal em seu trajeto até o centro do labirinto.

E há muito, muito mais neste livro.

Belíssimos, o romance e seu título.

Título da obra: A MAIS RECÔNDITA MEMÓRIA DOS HOMENS

Autor: MOHAMED MBOUGAR SARR

Tradutor: DIOGO CARDOSO

Editora: FÓSFORO

4 comentários

  1. Seu comentário claro e detalhado nos convida a entrar nesse universo distante de nossa realidade e que vem se aproximando devagarinho. Obrigada

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