“O Vendedor de Passados” de José Eduardo Agualusa (Angola, 1960) é um romance pouco extenso, mas marcado pela riqueza de sentidos n construção da trama. Um dos caminhos da leitura pode ter como referência o passado recente do país natal do autor, mas é somente um deles e deve ser articulado à multiplicidade de outras compreensões e reflexões, imprescindíveis para se chegar ao que o livro oferece de mais precioso. Agualusa remete-nos às complexas questões da identidade e da verdade. Primeiramente numa dimensão pessoal e depois em sua extrapolação para os coletivos.
Saber quem se é depende de ter memórias sobre o que se viveu. Nisto há universos inteiros constantemente em transição. Cheios de mistérios determinados pela pluralidade dos eventos e pelas limitações do intelecto diante da fluidez dos significados no que se pretende apreender. Há a eterna fragilidade da veracidade acreditada autenticamente e a insistência dos simulacros forjados com doses variáveis de desonestidade. Há o conturbador amalgamento entre ver o que realmente existe e o enganar-se com ilusões de diferentes naturezas. Há a confusão entre o fato objetivo e interpretação dele. Há as temíveis manobras relacionadas com a intenção de sinceridade e os embustes para criar falácias e assaltar espíritos. Intensos são os sonhos, dos despertos ou dos adormecidos. Nunca é fácil saber qual dessas modalidades de onirismo diz mais e melhor sobre aquilo que se é.
Muito sucintamente, a estória fala de um homem que se ocupa de inventar passados para clientes interessados num futuro melhor. Um processo de livramento daquilo que tornou insuportável uma determinada identidade do indivíduo e a construção de outra a ser apresentada daí em diante como sua história, no intuito dele descobrir e ocupar outros lugares no mundo. Uma lagartixa que assiste aos engendramentos entre o artífice e seus clientes narra o que vê, o que presume e o que sonha. Não se trata de realismo fantástico. É um tipo de representação estilística bastante original para sugerir que o fantasioso e o realista talvez sejam extraídos da mesma matéria no complicado conjunto de saberes a respeito da vida. A mira de Agualusa está no entendimento mais legítimo sobre a gente que sucessivamente habita e domina os espaços onde vive, tarefa que cumpre utilizando lentes caleidoscópicas.
A fixação de nossas lembranças é um processo incerto em muitos aspectos: quanto ao que seleciona para a posteridade de nossas vidas e a nitidez do que armazena, associações a que vincula memórias, o que parece ter ocorrido, mas não ocorreu e bem mais. Não há estabilidade imagética e menos ainda semântica naquilo que fica registrado. A evocação do passado é caracterizada pela inexatidão, geralmente bem camuflada. Conta muito a fabulação no que recordamos, a criação deliberada ou não, independentemente da de boa-fé ou má-fé com que foi urdida. Todavia, o incerto passado é sustentáculo de nossas identidades, igualmente insubmissas precisões cartesianas e eternamente cambiantes. O potencial de inconsistências, contradições e de contrassensos é enorme naquilo que afirmamos sobre nós e sobre o mundo.
Constituir a identidade pessoal é um desafio que não finda e beira sempre o abismo do vazio. Dela não podemos prescindir, a despeito de sua exígua acurácia. Parece vã a crença na solidez de seus fundamentos. Não controlamos suas evoluções e vamos rolando por mutações ao longo dos anos em que existimos. Contando com alguma sanidade não descarrilamos radicalmente daquilo que nos guia para afirmar algo sobre quem somos. O pertencimento às coletividades é talvez mais um esforço do que uma possibilidade concreta, também farto em enganos ou falsificações. Menos ameaçador pelo caráter mais francamente artificial e o trânsito por discursos compartilhados, tem finalidades identitárias distintas. Uma sociedade, um povo, tece sua história, em grande parte, nadando nestas águas. Seus nacionais podem sê-lo muito seriamente ou curvarem-se com maior ou menor humor às imposições daquilo em que não creem.
Em “O Vendedor de Passados” a escolha das palavras, construção das frases e arquitetura de cada capítulo (eles são sempre muito curtos) implicam a criação de beleza lírica, que nunca caminha para hermetismos ou preciosismos inúteis, potencialmente assustadores e tendentes a alijar o leitor em seu percurso. A poesia transformada em prosa é pragmática e parece ter por objetivo a aproximação com a sensibilidade de quem lê. É profundamente delicada, mesmo para falar das infindáveis brutalidades humanas. Também é refinada por gerar uma espécie de empatia e intimidade com os personagens. Não anula a possibilidade de que um humano seja realmente ético, generoso e de que aja bem. Nisto reside um tipo de esperança que nada tem de ingênua, não se assenta em pregações, nem promete as soluções corretas para os enormes problemas criados pelos seres que são humanos. Lembra somente que esperar o contraditório no homem é razoável, que bem e mal estão sempre prontos para mesclas imprevisíveis e que confundem o olhar, mesmo de quem tem coragem para aceitar a coexistência das qualidades opostas e seus derivados.
Um belo romance.
Título da Obra: O VENDEDOR DE PASSADOS
Autor: JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
Editora: TUSQUETS
