A RELÍQUIA

Eça de Queiroz (Póvoa-do-Varzim, Portugal, 1845 – Neuilly-sur-Seine, França, 1900) é conhecido como um dos maiores escritores realistas em língua portuguesa. E foi profundamente realista. Ao falar das gentes, seguindo meandros do funcionamento pessoal, familiar ou da vida em sociedade, não deixou de desnudar aquilo que parecia ser de “bom-tom” camuflar. Mesmo considerando o contexto específico em que criou suas tramas, não se tornou um escritor “datado” pois, com outras roupagens, os fundamentos com que caracterizou os indivíduos e sociedade persiste para a frente e já existia para trás dele. Ele falou de desumanidades mascaradas, precariedades e contradições difíceis de superar nas humanidades e deu bastante destaque à hipocrisia enquanto artimanha bem-vinda, a seu modo e momento, em variadas situações. Talvez seus maiores romances sejam “Os Maias”, “O Primo Basílio” e “O Crime do Padre Amaro”, mas “A Relíquia” mostra a mesma agudeza de espírito.

“A Relíquia” foi publicada como livro em Portugal e como folhetim na Gazeta de Notícias no Rio de Janeiro em 1887. Conta a estória de um homem, neto de padre, órfão de mãe ao nascimento e de pai aos sete anos, que foi criado por uma tia materna de moral extremamente severa e que era um verdadeiro estandarte do fanatismo religioso católico. O protagonista tentou adaptar-se a todas as exigências do mundo que o cercava e disfarçava aquilo que em seu comportamento seria ameaçador para alcançar o que concebia como sucesso. A maior demanda da tia era o puritanismo e acatamento irrestrito por ele dos preceitos do catolicismo como ela o interpretava e praticava e a grande ambição do sobrinho era herdar o muito dinheiro dela. Sem a fé que o compatibilizasse com o que a parenta exigia, sexualmente ávido e afetivamente superficial, lançou-se numa aventura desmedida ao viajar à Terra Santa com a missão de adquirir para a velha senhora a mais preciosa relíquia que conseguisse. Algum objeto estreitamente vinculado à trajetória de Jesus Cristo e da Sagrada Família na saga que fundou um novo ramo do monoteísmo. Onde era esperado o triunfo tomou lugar o fracasso, mas tanto um quanto outro importam pela inconsistência fatal que os constituiu. Grande parte da narrativa passa-se durante essa viagem, quando é revelada com maior nitidez a personalidade do ator central e a sutil complexidade de sua incumbência. Também é nos entremeios desta peregrinação que o autor faz talvez sua mais ousada observação sobre o cristianismo no universo em que foi criado: uma forma de rebeldia, declaração de descrença na ordem religiosa e social vigente, uma aventura radical de suspeição de um conjunto de crenças e mandamentos e lançamento do germe de um sistema alternativo. Havia algo em comum entre Cristo em seu mundo e o protagonista do romance em relação à tia e sua fé, por mais que parecessem opostos. As trajetórias refletem traços de uma na outra, aproximando o sagrado e o mundano, a virtude e o pecado, humildade e pretensão. Como se fossem condições originadas da mesma matéria que constitui a essência da alma humana. Tramitam especularmente a infração, a punição/sacrifício/aniquilamento e a ressuscitação. Há fineza na ironia e no engenho de Eça ao dizer o que pretende. Inclusive por um certo excesso descritivo da empreitada do personagem nas sacras terras, no engendramento da melhor ficção para fundi-la com a realidade.

Eça de Queiroz parece ter sido um cético quanto aos bons propósitos das instituições e de seus dirigentes, mas também no que concerne aos teores do Bem nas relações entre pessoas. As críticas à prática do catolicismo fanático e à falsa profissão-de-fé, assim como à rigidez moral (também um embuste destinado a iludir) e negligência da crítica ética tendem a ser focais neste e em seus outros livros. Marcam seus textos as vias que oferecem oportunidades do leitor olhar para além das superfícies narrativas e refletir sobre as fraquezas humanas e sua exploração pelos que, conhecendo-as, exploram-nas e tiram vantagens de muitas espécies. O cerne de seus enredos tem relação com os mecanismos das diversificadas e impudentes manobras para a dominação de uns indivíduos sobre os outros e o fascínio pelo poder que tanto dá e tanto tira. Fica patente a facilidade com que o homem despreza os valores que seriam barreiras para o predomínio do Mal, enquanto opressão, ganância e leviandade nas intenções e ações, tanto em âmbito pessoal como no que é público e legitimado institucionalmente.

O autor é consagrado e não carece de elogios, mas vale ressaltar que se realista é, isto não significa somente fazer parte de um movimento literário formal, mas sim ter um tipo característico de postura no modo de tentar compreender o que há de mais verdadeiro e cru no homem de qualquer época.

Título da Obra: A RELÍQUIA

Autor: EÇA DE QUEIROZ

Editora: LIVROS DO BRASIL (PORTO EDITORA, PORTUGAL)

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