Thomas Mann (Alemanha, 1875 – Suíça, 1955), um dos grandes escritores europeus da primeira metade do século XX, pode ser lido a partir de diferentes perspectivas. Entre elas, tem muito relevo o refinado exercício da reflexão ética. Longe de ser um pregador de supostos modos corretos de pensar e agir, ele valorizou a interrogação sobre origens e consequências do comportamento humano. Não cooptou diante do espanto, talvez sustos, que o mundo lhe causava. Muito do que ele entendia como barbárie era tomado como o contrário disso por outras pessoas e setores importantes das sociedades. Mirou o perigo que os indivíduos podem representar uns para os outros a partir da arrogância nas concepções rígidas sobre o mundo, na falta de relativização interpretativa, de questionamento e no desejo soberano de dominação de uns sobre outros. Mann foi uma das vozes que retumbaram contra os moralismos, hegemonias e outras violências e tentou alertar seus leitores para a necessidade de considerar as complexidades nas interações humanas e a busca de vias mais justas e menos destrutivas nas relações, em âmbito íntimo ou coletivo.
“Mário e o Mágico” é uma novela publicada em 1929, quando o mundo digeria eventos recentes que tinham culminado na Primeira Guerra Mundial e gestava tremendas conturbações que em breve seriam concretizadas. É um relato breve sobre a conexão entre um “mágico”, prestidigitador, mesmerizador ou mais propriamente um ilusionista de nome Cipolla e seu público numa única apresentação em um balneário italiano. O narrador observa com desconforto crescente o que se dá entre o sinistro homem, aceito como alguém dotado de capacidades extraordinárias, e a plateia. A maior parte dos presentes passa a submeter-se a humilhações, em parte pela crença ingênua nos poderes de Cipolla e por um tipo de conivência devida à suspensão da reflexão crítica. Ele empunha um chicote nas toscas manobras feitas com cada pessoa que se submete a seus comandos. Ninguém é concretamente vergastado, mas o rebenque torna-se um elemento de forte carga simbólica nos acontecimentos da noite. O que realmente açoita são as palavras impositivas e a postura arrogante daquele sombrio condutor do público. Conhece os ardis que levam ao convencimento e ao jugo consentido do outro. Ele age como um adestrador, sem nenhum respeito pela dignidade dos que ali estão. Diverte-se com o próprio poder e acaba por magnetizar quase todos. Passa a ser um comandante cada vez mais cruel e poucos detectam a crueldade. Quase todos comportam-se como títeres incapazes para a autonomia. Contribuem para manter e até incrementar o poder do ilusionista. Os que despontam na multidão tentando afirmar alguma singularidade e vontade própria são tragados pelas artimanhas do domador. A maioria aprova o que ele faz, talvez pela ideia de que testemunham e participam de algo extraordinariamente bom. Mário, garçom de um restaurante local, é o único que ao se aperceber da humilhação que o atingira reage drasticamente e promove um desfecho fatal.
Apesar de Thomas Mann ter manifestado insatisfação quando classificaram o livro como um libelo político e o seu foco de interesse declarado estar na incapacidade para o funcionamento ético entre humanos (algozes e vítimas), questão atemporal e sem espaço específico de ocorrência, é difícil não associar o teor da narrativa ao que acontecia no mundo, especialmente na Europa, daquele momento. Os totalitarismos estavam a caminho de alturas insuspeitadas pelos que os alimentavam por razões diversas e malsãs. Eram as vésperas do fascismo encabeçado por Mussolini e do nazismo de Hitler, assim como tinha início o período stalinista na URSS (formada em 1922). Cidadãos eram transformados em massa de manobra, aprisionados pela assunção de que tudo seria justificável frente ao que era prometido por esses líderes; alguns silenciavam pelo medo que sentiam, poucos ousavam reagir.
Vale grifar que Mann nunca desistiu da denúncia daquilo que serviu (e ainda serve) como esteio para comportamentos deletérios à civilidade, que ameaçam a existência do homem e do planeta. O autor falou de um mal que germina incessantemente em indivíduos e coletividades. Mal que transita sedutoramente entre os que evitam indagar sobre o que pretendem e o sentido do que objetivamente fazem. Mal que permite navegar pela vida sustentando mitos de superioridade intelectual e moral com aguerrida convicção, somente possível em função da debilidade ética que neles se instala e os transforma em corruptores e verdugos de outros.
Título da Obra: MÁRIO E O MÁGICO, Uma experiência trágica de viagem
Autor: THOMAS MANN
Tradutor: JOSÉ MARCOS MACEDO
Posfácio: MARCUS VINICIUS MAZZARI
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

Boa dica, obrigado
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Excelente. Uma síntese muito feliz. Impossível não se sentir atraído por mais essa obra do autor de “A montanha mágica”. Obrigado por me “apresentar” essa publicação de qualidade!
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Muito bom! Tema e reflexão neste momento atual. Parece ser um livro para os tempos de hj?
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